Álcool e ayurveda

Uma das coisas mais lindas do ayurveda é que ele opera fora de um sistema moral, ou seja, nada é bom ou mau por si mesmo, tudo depende do uso que fazemos ou da relação que estabelecemos com isso. Assim, não tem porque demonizar o álcool.

O que podemos investigar é que tipo de relação nossa sociedade nos incentiva a ter com as bebidas alcoólicas. Culturalmente falando, a gente bebe bastante. A associação que se faz entre álcool e lazer, álcool e diversão, álcool e relaxamento, álcool e recompensa pelos perrengues que enfrentamos, álcool e um bom convívio social em eventos, álcool e alívio de dores da alma e etc etc etc, é explícita e não dá pra negar. E aí vale a gente se fazer algumas perguntas, tentando entender porque que o álcool chega como resposta a todas essas questões. Dá pra concluir que existe um mecanismo social que nos incentiva a buscar um grau de evasão dos problemas que existem em nosso modo de vida por meio do álcool.

Então, o problema principal talvez não seja o álcool em si, mas nosso modo de vida contemporâneo, que demanda uma espécie de pausa radical para que a gente possa enfrentar o dia a dia. Pausas são muitas vezes necessárias e bem-vindas, por isso a escolha por “pausa radical” como uma distinção que aponta para a tal evasão que o álcool tão eficientemente provê. É como se a presença do álcool nas nossas atividades sociais sinalizasse que uma pausa não basta, é preciso parar e esquecer, parar e viver momentaneamente uma realidade alternativa radicalmente distinta da realidade corrente.

Ok, mas e o ayurveda nisso?

Bom, o ayurveda, antes de tudo, é uma proposta coletivista de saúde. Claro que quando a gente propõe as práticas clássicas como raspar a língua ou se submeter a uma abhyanga, por exemplo, os procedimentos em si são individuais, mas o propósito maior disso é necessariamente coletivo. Uma sociedade adoentada adoece seus indivíduos, e essa é uma das muitas razões para se entender o ayurveda como uma prática coletiva de saúde.

Assim, todo o questionamento sobre o uso e abuso que nossa sociedade faz das bebidas alcoólicas é pertinente à esfera do ayurveda. Para além de práticas individuais de saúde, ele – especialmente se visto no contexto cultural em que surgiu – pode ser extrapolado para uma forma de pensar criticamente os modos de vida que adotamos e os impactos que isso acarreta à nossa saúde – em todas as suas esferas.

Tá, mas num recorte mais circunstancial de nosso metabolismo, o que se pode dizer?

O álcool em si é um grande agravante de vata, porque ele tem a característica de ser ressecante. Por aí já podemos concluir que os piores horários para seu consumo são aproximadamente entre 2 da tarde e o pôr do sol, e entre 2 da manhã e o nascer do sol. Intercalar a bebida alcoólica com uma água com gotas de limão espremido pode ser uma boa, assim como acompanhar a bebida com comidas mais pesadas, como raízes fritas (batata, mandioca etc).

O tipo de bebida alcoólica também é relevante, e uma dose de vinho, que tem o potencial de agravar pitta, pode ser interessante para alguém com agravamento de kapha. Configurações individuais à parte, dá pra generalizar dizendo que o consumo de uma cerveja de trigo é mais indicado na hora do almoço, e um vinho tinto no início da noite.

A proposta primeira do ayurveda é a auto-observação, ou seja, que você esteja consciente dos efeitos que uma bebida – ou comida, ou atividade – provoca em você. Primeiro no seu corpo, observando se resseca, se esquenta, se te deixa com mais sensação de peso ou leveza, e por aí vai. Segundo, observar os efeitos na sua mente, e o que isso acarreta às suas emoções e suas escolhas. É comum que o álcool leve, a curto prazo, a um estado de euforia (rajas), seguido, a médio prazo, por um estado de embotamento mental (tamas).

Em níveis mais amplos, observar que papel o álcool tem na sua vida e na sua rotina, como afeta sua sociabilidade, como atravessa seu círculo social. Como é que ele está presente na sociedade e que consequências seu consumo acarreta.

Tornar-se incansavelmente um observador de si e de seu entorno, isso é a ferramenta de base que o ayurveda nos ensina a desenvolver.

Deixe um comentário

Rolar para cima