A Profissão de Terapeuta Ayurveda Existe Mesmo?
Parte I
Querides leitores, me perdoem, mas este assunto é demasiado importante e extenso para caber em apenas um artigo. Vou precisar escrever em partes, como se fossem capítulos de um livro. Se a pergunta suscitou algum interesse, eu vos convido a me acompanhar nesta primeira parte.
Esta é uma pergunta que eu me faço desde que o Ayurveda entrou em minha vida. Deixa eu contar minha história…
Há uns cinco anos atrás, depois de muitos anos trabalhando longas horas dentro dos blocos cirúrgicos como anestesiologista, me alimentando mal, dormindo mal, e tendo que conviver com cirurgiões cujas condutas morais e éticas não condiziam com as minhas, eu passei por uma crise profunda. Me sentia deprimida, triste, ansiosa e com uma sensação de não pertencer mais àquele universo… Em meio aos meus devaneios, achei que uma transição de carreira seria a única saída. Como sempre fui apaixonada pela cozinha, resolvi fazer um curso de gastronomia. Fiz a minha cidadania italiana e, dois anos depois, me mudei para Portugal para trabalhar como cozinheira. Sim, você leu direito. Abandonei a Medicina por completo e me vi dentro de uma cozinha profissional, lavando pratos e cortando cebolas…
Mas, o Universo tinha outros planos para mim… Nenhum dos meus investimentos como cozinheira deram certo. Percebendo isto, fui até o fundo do poço da minha existência. Sem trabalho, sem dinheiro, sem nenhuma perspectiva e me sentindo totalmente perdida e sem chão, as aulas de yoga foram meu único alento em meio a tudo aquilo. E foi lá, deitada no meu tapete, em shavasana, totalmente entregue, que eu supliquei por guiança… Eis que a minha professora me chamou no final da nossa aula para conversar. Ela me perguntou se eu já conhecia o Ayurveda. Ela tinha a impressão de que eu iria me alinhar com esta vasta sabedoria Divina. Ela não estava convencida de que eu não queria mais atuar como médica. E ela tinha razão… Eu não conhecia, mas fui logo atrás de me informar.
Assim que comecei a pesquisar, meu coração começou a bater mais forte! Parece que eu estava finalmente enxergando uma forma de praticar medicina que se alinhasse com meu novo ser em transformação. Minha Alma vibrava com esta descoberta! A minha transição de carreira não seria para a área de gastronomia, mas sim para esta profissão chamada Terapeuta Ayurveda… Mas, que profissão era esta? Eu nunca havia ouvido falar sobre ela, mas também nunca havia ouvido falar em Ayurveda. Pensava que era apenas uma questão de me abrir para novos horizontes. Afinal de contas, existem, hoje em dia, uma infinidade de profissões que a minha geração nunca nem teve opção de almejar.
O primeiro desafio logo surgiu. Eu precisava entender melhor o que seria um Terapeuta Ayurveda. Aprendi que na Índia, berço desta nobre sabedoria, esta profissão não existe. Como assim?
Antes de mais nada, precisamos entender como surgiu o ayurveda no mundo. A prática e o ensino desses conhecimentos voltam para mais de oito mil anos. Sua tradição é mais antiga do que a própria origem da escrita. Todos os ensinamentos eram repassados de forma oral no princípio. Os médicos daquela época eram chamados de Vaidyas. Eles eram responsáveis não apenas pelo tratamento das pessoas doentes de suas aldeias, mas também por ensinar a população a ter saúde. Os melhores Vaidyas eram aqueles que pouco precisavam se ocupar de tratar doenças, pois eram capazes de manter seus “pacientes” saudáveis. E quem podia exercer tão nobre função? Poucos… Era preciso ter a bênção do Rei e, este ensinamento ficava restrito a famílias específicas. Não bastava desejar ser, era preciso todo um contexto sócio cultural.
Os ensinamentos eram passados desde uma idade bem jovem. O aprendiz se mudava para a casa do Mestre (Kul), e exercia papel de serviçal e de aluno. Quando o Guru (Mestre) achasse que o aluno estivesse pronto, iniciava os ensinamentos. Este tipo de relação se chama Gurukula. A transmissão de conhecimento se dava através da tradição oral e treinamento prático, assegurando uma relação forte e profunda entre Mestre e Aluno. Esta formação poderia levar muitos anos, às vezes uma vida inteira.
Com o passar dos anos, o surgimento da escrita (devanagri), trouxe com ela, uma nova fase no ensino do Ayurveda. O Charaka Samhita, Sushruta Samhita e Ashtanga Hridaya são antigos textos indianos que são fundamentais para a prática do Ayurveda. O texto inclui discussões e menções de vários professores e discípulos na forma de diálogos. No Charaka Samhita, o conhecimento é atribuído ao seu proponente, Atreya, que tinha um grupo de discípulos talentosos. Entre eles estavam Bhela, Jatukarna, Agnivesha, Parashara, Harita e Ksharpani. Mais tarde, esses discípulos fizeram contribuições significativas, compondo seus próprios textos abrangentes. O mais renomado entre eles é Agnivesha, autor do Agnivesh tantra, que hoje é mais conhecido como Charaka Samhita. No Sushruta Samhita, Dhanvantari é reconhecido como a autoridade fundadora que transmitiu sua sabedoria a um grupo de discípulos, que incluía Sushruta, Aurabhra, Aupadhenava e Paushpakalavat.
As invasões e a colonização britânica tiveram efeitos significativos, incluindo períodos de declínio e desafios. No entanto, o Ayurveda mostrou resiliência e experimentou um renascimento na era pós-independência. Durante a era colonial, o Ayurveda enfrentou desafios significativos à medida que a medicina ocidental ganhou destaque. O ensino do Ayurveda foi marginalizado e as suas práticas tradicionais foram desencorajadas. No entanto, com a independência da Índia, foram feitos esforços para reviver e modernizar a educação Ayurveda, incorporando princípios científicos e estabelecendo instituições formais. O Ayurveda se tornou um patrimônio nacional, e passou a simbolizar a força da independência da Índia.
Atualmente, a educação Ayurveda na Índia está integrada ao sistema de educação formal. Os programas de graduação BAMS (Bachelor of Ayurvedic Medicine and Surgery) e pós-graduação são oferecidos em várias disciplinas ayurvédicas, incluindo medicina ayurvédica, farmácia ayurvédica e enfermagem ayurvédica. O currículo combina conhecimento teórico, treinamento prático e exposição clínica para preparar os alunos para a prática profissional.
O currículo do Ayurveda abrange várias disciplinas, que na era contemporânea são anatomia, fisiologia, patologia, farmacologia e prática clínica. O curso fornece aos alunos uma base sólida em princípios, diagnóstico e métodos de tratamento ayurvédicos. Além disso, há ênfase no treinamento prático, que inclui experiência prática em hospitais e dispensários ayurvédicos.
O currículo do BAMS (Bacharelado em Medicina e Cirurgia Ayurvédica) é dividido em cinco anos e seis meses profissionais, sendo cada ano focado em disciplinas específicas. No primeiro ano, os alunos estudam Padartha Vigyan (Princípios Fundamentais do Ayurveda), Sânscrito, Kriya Sharira (Fisiologia), Rachana Sharira (Anatomia) e Maulik Siddhanta (Princípios Básicos do Ayurveda). Passando para o segundo ano, o currículo inclui Rasa Shastra (Farmacologia e Farmacêutica), Rog Nidan (Patologia e Diagnóstico Clínico) e Dravya Guna (Farmacologia Ayurvédica). No terceiro ano, os alunos se aprofundam em Agada Tantra (Toxicologia), Kaumar Bhritya (Pediatria), Stree roga evum Prasuti tantra (Obstetrícia e Ginecologia), Swastha vritta (Medicina Preventiva e Social) e um estudo aprofundado do Charaka Samhita. O quarto ano (que na verdade, dura um ano e meio) cobre disciplinas como Shalya Tantra (Cirurgia), Shalakya Tantra (Oftalmologia e Otorrinolaringologia), Panchakarma (Estudo avançado de terapias de purificação), Kayachikitsa (Medicina Interna), Metodologia de Pesquisa e Ética Médica, e treinamento prático através de estágios em hospitais e clínicas ayurvédicas. Após todo este processo, vem o quinto e último ano, com ênfase em estágios práticos por todas as disciplinas. Ao todo, são cinco anos e seis meses de preparação ao nível de graduação. O aluno ainda pode optar por fazer uma especialização (o que se equipara ao nosso programa de Residência Médica no Brasil).
Dito isto, meu desejo é demonstrar que os profissionais que saem deste curso são chamados de Médicos Ayurvédicos. Percebem o quão parecido é este curso com o nosso curso de Medicina Ocidental? Quando eu perguntei para a minha professora de ayurveda (uma Médica Ayurvédica Indiana) o que seria um Terapeuta Ayurveda, ela me olhou com perplexidade. A melhor resposta que ela conseguiu elaborar foi esta: seriam os profissionais técnicos que são treinados a aplicar as várias práticas corporais de terapias que são prescritas pelos Médicos Ayurvédicos. Além de prescrever, o Médico é o responsável inclusive pela elaboração do medicamento. Na minha cabeça, esta função seria comparável ao trabalho de um Técnico de Enfermagem ou Massoterapeuta, aqui no ocidente.
Então, eu volto a me perguntar: seria esta a noção de Terapeuta Ayurveda que percebemos aqui no ocidente?
Não…
Até o próximo capítulo meus amores!
Namasthubhyam!

A Karine Meller é médica, formada pela PUCRS/1999. Fez especialização em 2021 de Anestesiologia-HCPA. Realizou mestrado na área de Medicina/PUCRS. Trabalhou vários anos em Hospitais da região de POA. Atualmente, Chefe do Serviço de Anestesiologia-Hospital Vila Nova/POA. Formada em Gastronomia-IGA/2019. Trabalhou como Chef de Cozinha em Portugal, onde morou durante 1 ano. De volta ao Brasil e buscando uma forma holística de atuação médica, encontrou no Ayurveda o seu porto seguro. Atualmente é pós-graduanda em Medicina Ayurvédica-Suddha Yoga e Ayurveda/Dr Rugue. Estudante de sanskrito e membro do “Projeto Cuidando de Quem Cuida”-Hospital Vila Nova, realizando atendimentos de Ayurveda ao corpo funcional e cuidando do peri operatório de pacientes cirúrgicos do Hospital.
Faz pós graduação em Medicina Canabinoide-Universidade Unyleya, no intuito de agregar em herbologia no Ayurveda.